Por Deivid Willian dos Prazeres – 05/05/2016
Uma recente decisão judicial proferida por um juiz criminal da Comarca de Lagarto-SE ordenou a suspensão do aplicativo de celular Whatsapp em todo o Brasil, prejudicando uma infinidade de usuários que utilizam o referido serviço para fins recreativos ou profissionais.
A decisão, segundo noticiado pelos grandes portais, teria sido motivada pela recusa do Facebook (proprietário do Whatsapp) em fornecer o conteúdo de determinadas conversas que tinham como interlocutores sujeitos alvos de uma investigação criminal. motivo este invocado para fundamentar outra decisão anterior que decretou a prisão do vice-presidente do Facebook na América Latina, a fim de coagir a empresa a fornecer os dados solicitados.
Em resposta a solicitação judicial, o Facebook teria comunicado a impossibilidade de fornecer as informações pleiteadas por não possuir controle sobre o conteúdo veiculado pelo seu aplicativo, vez que não efetua o armazenamento dos dados, que são criptografados e visualizados exclusivamente pelos usuários das conversas por ele intermediadas.
Nesse passo, muitas pessoas, ingenuamente, apressaram-se em atribuir a responsabilidade desta odiosa medida exclusivamente à Lei 12.965/2014, vulgarmente conhecida como "Marco Civil da Internet", em virtude de alguns de seus dispositivos terem sido supostamente invocados pelo magistrado para fundamentar a polêmica decisão.
Trata-se, contudo, de uma interpretação equivocada da situação, que oculta o verdadeiro e sintomático problema que atualmente acomete parte do Poder Judiciário com a conivência de porção significativa da população brasileira.
Antes de tudo, é preciso destacar que o Marco Civil da Internet não obriga aplicativos de internet (como o Facebook ou o Whatsapp) a manterem o registro do conteúdo de conversas privadas por ele intermediadas, mas exclusivamente o registro sigiloso de seus acessos pelo prazo de 6 (seis) meses (art. 15, caput), prazo este prorrogável a pedido do Ministério Público ou da autoridade policial ou administrativa (art. 15, §2º), devendo sua disponibilização, de todo modo, ser precedida de decisão judicial neste sentido (art. 15, §3º).
Determinada a disponibilização do registro de acessos e descumprida a decisão judicial, o "Marco Civil da Internet" prevê que a sanção imposta deverá observar "a natureza e a gravidade da infração, os danos dela resultantes, eventual vantagem auferida pelo infrator, as circunstâncias agravantes, os antecedentes do infrator e a reincidência (art. 15, §4º).
A pena de suspensão decorrente da combinação dos artigos 11 e 12 da Lei 12.965/2014 não autoriza a interrupção irrestrita do serviço do Whatsapp, mas somente (e se for o caso) a suspensão temporária das atividades que envolvam os atos elencados expressa e taxativamente no referido dispositivo, conforme salientou o Conselho Gestor da Internet-CGI (órgão oficial instituído pelo Decreto nº 4.829/2003) em nota publicada quando o serviço de comunicação foi suspenso por decisão semelhante prolatada pela 1ª Vara Criminal de São Bernardo do Campo-SP.
No presente caso, contudo, ignorando a justificada impossibilidade técnica no atendimento da diligência pleiteada e a ausência de obrigação legal neste sentido, vez que a Constituição Federal assegura que ninguém é obrigado a fazer nada senão em virtude de lei (art. 5º, II, da CRFB), o magistrado sergipano, aparentemente abusando das prerrogativas que lhe são conferidas constitucionalmente (tanto que está sendo investigado pelo Conselho Nacional de Justiça por este fato), exigiu o cumprimento da medida de suspensão do serviço, prejudicando, de maneira colateral, diversos terceiros interessados que não possuem nenhuma relação com os fatos discutidos naquele processo.
O bloqueio do Whatsapp, portanto, não decorre da lei, que, além de ter sido idealizada com o objetivo de assegurar o exercício da liberdade de expressão no meio virtual e proteger o sujeito que consome internet (art. 2º), não possui nenhum fundamento que autorize a medida determinada pelo juiz de Lagarto-SE.
Na verdade, a responsabilidade por esta situação é de um fenômeno há muito denunciado pela doutrina pátria, a exemplo de Lênio Streck, conhecido como "decisionismo" decorrente de um monstro chamado "ativismo judicial", alimentado, especialmente na esfera criminal por parte da população que não só defende como exige do Poder Judiciário uma postura maquiavélica em que os fins justifiquem os meios, discurso este que torna legítimo, inclusive, prejudicar diversos internautas em prol do sucesso de uma investigação criminal para proteção da "saúde pública"[1].
Vale lembrar que, antes mesmo da edição do Marco Civil da Internet, alguns magistrados, extrapolando a postura almejada de quem exerce o delicado mister de tutelar direito alheio, igualmente prejudicaram diversos brasileiros ao exigirem o cumprimento desmedido de suas decisões.
Exemplo disso é o fato de 2007 envolvendo a atriz Daniella Cicarelli, o empresário Renato Malzoni Filho e um vídeo íntimo publicado no Youtube, em que milhares de brasileiros foram punidos com a proibição de utilizar o serviço de streaming por força de uma decisão judicial descumprida, embora a empresa tenha justificado a impossibilidade técnica dar cumprimento a medida por não exercer controle prévio do conteúdo que era publicado pelo próprio usuário dentro do sistema por ela mantido.
Por mais absurda que aparente ser esta situação, medida semelhante foi recentemente tomada pelo Tribunal de Justiça Paulista, que condenou o Google Brasil a excluir todos os vídeos envolvendo Nissim Ourfali (um garoto que ficou nacionalmente conhecido após divulgar na internet o clipe exibido em seu Bar Mitzvá), independentemente da indicação dos links cuja exclusão seria desejada, coisa que, sem muito conhecimento técnico, se não for impossível, certamente gera um encargo desproporcional a empresa e desonera a vítima, que, neste caso, seria a responsável pela sua exposição indevida ao ter, voluntariamente, feito o upload de seu vídeo na rede e o compartilhado com os demais usuários.
Quem sabe o exílio social provocado por este recente bloqueio do Whatsapp não seja a oportunidade perfeita para todos refletirem sobre o modelo de jurisdição desejado no Brasil, exigindo mais qualidade técnica das decisões judiciais, especialmente em áreas que não façam parte do burocrático ramo do direito pátrio, antes que, como mote de salvar a humanidade das mazelas sociais criadas pelo próprio homem, a população brasileira seja novamente privada da utilização de determinados serviços essenciais na vida moderna.
Notas e Referências:
[1] O delito objeto da investigação é a mercancia de drogas.
BBC. WhatsApp: Bloqueio é 8º capítulo de disputa entre Justiça brasileira e empresas de tecnologia. Disponível em: http://www.bbc.com/portuguese/brasil/2016/05/160502_disputas_facebook_whatsapp_fs>. Acesso em 4 mai 2016.
BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm> Acesso em 4 mai 2016.
BRASIL. Decreto nº 4.829, de 3 de setembro de 2003. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2003/d4829.htm>. Acesso em 4 mai 2016.
BRASIL. Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm>. Acesso em 4 mai 2016.
CGI. Nota de esclarecimento em razão de decisão da Exma. Juíza da 1ª Vara Criminal do Foro de São Bernardo do Campo (SP), que envolve suspensão do Whatsapp em todo o território nacional. Disponível em: <http://cgi.br/esclarecimento/nota-de-esclarecimento-dezembro-2015/>. Acesso em 4 mai 2016.
CONJUR. Google é obrigado a excluir todos os vídeos de Nissim Ourfali do YouTube. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016-mar-15/google-obrigado-excluir-videos-nissim-ourfali-youtube>. Acesso em 4 mai 2016.
ESTADAO. Juiz que suspendeu WhatsApp vai enfrentar processo no CNJ. Disponível em: <http://link.estadao.com.br/noticias/cultura-digital,juiz-que-suspendeu-whatsapp-vai-enfrentar-processo-no-cnj,10000048968> Acesso em 4 mai 2016.
G1. Vídeo de Cicarelli pode tirar Youtube do ar no Brasil. Disponível em: <http://g1.globo.com/Noticias/Tecnologia/0,,AA1408132-6174-363,00.html> Acesso em 4 mai 2016.
G1. 'Sérgio Moro de Lagarto': quem é o juiz que bloqueou o WhatsApp no BrasilDisponível em: <http://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2016/05/sergio-moro-de-lagarto-quem-e-o-juiz-que-bloqueou-o-whatsapp-no-brasil.html>. Acesso em 4 mai 2016.
G1. WhatsApp deve ser bloqueado por 72 horas, ordena Justiça. Disponível em: <http://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2016/05/justica-do-sergipe-manda-operadoras-bloquearem-whatsapp.html>. Acesso em 4 mai 2016.
STRECK, Lênio Luiz. Justiça entre exegetismo e decisionismo: o que fazer?. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2014-mar-27/senso-incomum-justica-entre-exegetismo-decisionismo>. Acesso em 4 mai 2016.
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Deivid Willian dos Prazeres é Advogado criminalista, sócio do escritório Santana, Brasil & De Bona, formado e laureado pela Universidade do Sul de Santa Catarina-UNISUL, pós-graduado em Ciências Criminais pelo Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina-CESUSC, tesoureiro da Associação dos Advogados Criminalistas do Estado de Santa Catarina-AACRIMESC, membro da Comissão de Assuntos Prisionais da OAB/SC. E-mail: [email protected]
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