O direito é (deve ser) uma espécie de conhecimento teórico voltado à prática, entendendo-se por prática, com Althusser, “um processo social que coloca os agentes em contato ativo com o real e produz resultados de utilidade social”[1]. Logo, a própria existência do direito somente se justifica se, além de pensamento teórico, for compreendido como teoria para a prática, para a mudança da vida cotidiana das pessoas e em atendimento de suas necessidades mais básicas em sociedade.
É nesse sentido que este texto pretende demonstrar como, hoje, pelo direito, é possível que o povo exija de seus governantes e de seus legisladores a instituição de auxílio emergencial decorrente da situação de pandemia atual (ou que exija auxílios assistenciais em geral, mesmo sem situação de pandemia que o justifique).
O auxílio emergencial, tecnicamente, é um benefício excepcional criado, no âmbito da União Federal, pela Lei nº. 13.982, de 02 de abril de 2020, de natureza jurídica de assistência social, correspondente ao pagamento de R$ 600,00 mensais, basicamente, a pessoas de baixa e média rendas. E, já por esses termos, tem-se que se trata de tema submetido às normas decorrentes dos dispositivos dos artigos 203 e 204, da Constituição Federal, inclusive quanto à previsão de que Estados e Municípios são concorrentemente legitimados para atuação nessa área assistencial, e, principalmente, na determinação expressa de que haja participação popular na formulação de políticas e no controle das ações de assistência social da União, dos Estados e dos Municípios (artigo 204, II). Ainda, como foi observado na realidade política brasileira, podem instituir auxílio emergencial tanto a própria União como também Estados e Municípios.
Saber que o direito permite a instituição de auxílio de assistência social para pessoas de baixa e média rendas, então, deixa as seguintes questões: (a) Pode o povo exigir que lhe seja conferido esse direito a um auxílio emergencial? (b) Como?
A resposta à primeira questão, se pode o povo exigir algo dos legisladores e administradores públicos, é pautada no desenvolvimento da base civilizatória em que repousa, em tese, toda a história da humanidade desde o século XVIII: soberania popular num Estado democrático. Em outras palavras, se há um Estado qualquer, como o Brasil, que se entenda democrático e que, além disso, possua uma Constituição na qual se afirma, como na brasileira, que “todo o poder emana do povo” (artigo 1º, parágrafo único, Constituição Federal), então toda e qualquer pergunta que tenha a base de “pode o povo exigir?” deve ser respondida afirmativamente. No limite da teoria democrática, pois, se o povo pode até mesmo instituir nova Constituição, pode tudo fazer sob a Constituição existente, nada mais sendo a Constituição que um “compromisso das possibilidades”[2] que um povo estipula para si mesmo.
Logo, a resposta é sim: o povo brasileiro pode exigir, tanto de legisladores (Deputados Federais e Estaduais, Senadores e Vereadores) quanto de administradores públicos (Presidente da República, Governadores e Prefeitos), que seja criado e realizado um auxílio assistencial, inclusive emergencial, para a pandemia atual.
A resposta à segunda questão (- Como exigir?-) é aquela que representa o direito posto em prática e a tática jurídica que permite ao povo tomar as rédeas do poder político. Minha proposta é a utilização da iniciativa popular.
Trata-se do instrumento por meio do qual parcela do povo pode apresentar um tema que se torne objeto de deliberação institucional e, posteriormente, receba a chancela para se tornar norma jurídica, ou, nas palavras de Canotilho
A iniciativa popular é um procedimento democrático que consiste em facultar ao povo (a uma percentagem de eleitores ou a um certo número de eleitores) a iniciativa de uma proposta tendente à adopção de uma norma constitucional ou legislativa. [...] Trata-se, pois, de promoção da ‘actividade legislativa’ (law promoting) [...][3]
Por meio da iniciativa popular pode, então, parte do povo (eleitores) brasileiro, diretamente, propor a norma que quiser para que seja votada e aprovada pelo Poder Legislativo ou a medida administrativa que quiser adotar para que seja analisada e realizada pelo Poder Executivo, seja no âmbito da União, dos Estados ou dos Municípios. Há algumas vantagens nessa atuação direta do povo, principalmente para fins de demonstrar sua vontade política direta aos representantes, ou seja, legisladores e administradores, e, ao mesmo tempo, pressionar esses agentes políticos para que analisem imediatamente a vontade popular manifesta. Em suma: quando os eleitores se manifestam diretamente os eleitos devem prestar atenção, se pretendem continuar a exercer cargos políticos.
Se se tratar de lei federal, é necessário que 1% dos eleitores brasileiros se manifestem sobre o projeto de iniciativa popular, distribuídos por, no mínimo, cinco Estados, com 0,3% dos eleitores em cada um desses Estados (artigo 61, § 2º, Constituição Federal). Pode parecer que há requisitos demais, e realmente a Constituição brasileira não foi lá muito benéfica ao estipular tal quantidade de requisitos, mas temas como o auxílio emergencial de pandemia, ou qualquer auxílio assistencial (como um renda básica de cidadania), abrangem todo o território nacional e são do interesse de todos os brasileiros.
Nos Municípios é mais fácil o exercício da iniciativa popular, bastando que 5% dos eleitores se manifestem, para que apresentem o projeto de lei para instituir o auxílio (art. 29, XIII, Constituição Federal), e, nos Estados, dependerá de como é a previsão na respectiva Constituição estadual ou em lei específica (art. 27, § 4º, Constituição Federal), adiantando-se já para os leitores que a imensa maioria dos Estados possui previsão expressa sobre o tema da iniciativa popular.
Basta que o número específico de eleitores assine a proposta de iniciativa popular, sem necessidade de nenhum outro tipo de representação ou documentação específica, e a encaminhe, no caso de pretensão de lei de auxílio emergencial ou assistencial, para o Poder Legislativo correspondente: Câmara dos Deputados, no caso da União, Assembleias Legislativas, no caso dos Estados, Câmara Legislativa, no caso do Distrito Federal, ou Câmaras de Vereadores, no caso dos Municípios.
Ainda, nem mesmo precisa ser redigida a proposta em termos técnico-jurídicos, bastando que conste na proposta que “tal percentual dos eleitores apresenta projeto de iniciativa popular, para instituir auxílio emergencial/assistencial de R$ X mensais”. É o que se denomina iniciativa popular simples, genérica ou por moções e que deve ser analisada e desenvolvida pela Casa legislativa com todo o rigor jurídico que qualquer proposta de lei e, ainda mais, com maior atenção, por se tratar de manifestação direta da vontade popular.
Assim, em qualquer Município do país, por exemplo, 5% dos eleitores podem exigir que seus vereadores votem e justifiquem a instituição de auxílio emergencial ou assistencial. O direito de iniciativa popular, porque decorre diretamente da soberania popular e da democracia, é direito político fundamental e, como tal, exige sua satisfação no maior grau possível. Como decorrência, o Poder Legislativo, após receber proposta de iniciativa popular, é obrigado a dar resposta sobre o tema, não podendo ficar em silêncio ou “engavetar” a proposta. O Poder Judiciário pode, inclusive, ser acionado para obrigar a apresentação de tal resposta do Poder Legislativo, caso os eleitos ousem desrespeitar a manifestação da vontade direta dos eleitores, do soberano político, do povo.
Esses projetos de iniciativa popular, além disso, na imensa maioria dos casos, gozam de tramitação preferencial nas Casas legislativas e permitem até mesmo manifestação oficial, em Plenário, de representantes do povo, quando do processamento do projeto, sendo casos deveras interessantes para a participação da mídia local e até mesmo nacional, o que somente aumenta a pressão política pela aprovação do projeto e pelo acatamento da vontade popular.
Em suma, deixa o povo, aqui, de ser apenas destinatário do poder, para assumir sua posição de agente atuante, dotado de responsabilidade direta pelos rumos políticos a serem seguidos pelo Estado e pela criação direta de normas que vincularão suas atividades, sendo instrumento titularizado sempre por minorias democráticas[4], para provocar a atividade legislativa diretamente pela vontade popular manifesta.
A tática jurídica é colocar o conhecimento do direito a serviço da mudança social e, nesse caso, a atuação direta do povo para propor os temas de seu interesse, pela iniciativa popular, inclusive quanto à instituição de auxílio emergencial ou qualquer auxílio assistencial que se queira, é uma realização da democracia e da soberania popular nos limites daquilo que permite o direito, enquanto instituição voltada para o próprio povo e dele emanada.
Notas e Referências
[1] Iniciação à filosofia para os não filósofos. Trad. de Rosemary Costhek Abilio, São Paulo: WMF Martins Fontes, 2019, pág. 113.
[2] Zagrebelsky. El derecho dúctil. Ley, derechos, justicia. 10ª ed., Trad. Marina Gascón. Madrid: Trotta, 2011, p. 14.
[3]Direito constitucional e teoria da constituição. 5ª ed., Coimbra: Almedina, 2002, p. 294. (grifos do autor).
[4] HORTA, Raul Machado. Direito constitucional. 5ª ed., rev. e atual. por Juliana Campos Horta. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 517.
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