Série eProcesso - prática com teoria IV - eNorma: necessidade de explicitação de um processo tecnológico - Por S. Tavares-Pereira

31/03/2017

Por S. Tavares-Pereira – 31/03/2017

Séries 

Neste 2017, as publicações estão classificadas em séries. Veja, no pé deste post, as publicações anteriores. Hoje se dá sequência à série eProcesso: prática com teoria.


Série eProcesso: prática com teoria IV

eNorma: necessidade de explicitação de um processo tecnológico.  

As deturpações que as tecnologias da informação e da comunicação (TIC) podem introduzir nos sistemas funcionais jurídico-sociais são uma preocupação realçada inicialmente no exterior e para a qual venho chamando a atenção no Brasil há alguns anos. No exterior, nomes como os de Lessig[1] e Citron[2] são fontes indispensáveis de pesquisa e reflexão a respeito das distorções que a automatização, viabilizada pela tecnologia, pode introduzir nos sistemas sociais funcionais do Direito. Minha preocupação sempre foi, precipuamente, o processo judicial, embora esse efeito distorção possa ser percebido com clareza em todos os locais onde normas jurídicas ganham expressão tecnológica para se autoaplicarem.

Lessig trabalha a metáfora do code is Law. Ele se refere ao “code”, nesta expressão, para chamar a atenção dos juristas e legisladores que sempre entenderam que corpos de normas prima facie se consolidam em códigos (civil, penal). E, portanto, não há nada de especial em dizer que o código é o Direito. O trocadilho realça exatamente o fato de códigos de outra natureza, exprimindo normas, estarem ocupando espaços especiais na adjudicação do Direito. As proposições lingüísticas legislativas, de fato e sem dúvida, para ganharem automaticidade, precisam ser tecnologicamente transformadas em códigos algorítmicos, interpretáveis e executáveis por computador. Lessig destaca que, no caso, esses códigos que exprimem a lei são o Direito.

Danielle Keats Citron é mais incisiva e direta. Afirma que os programadores fazem leis ao fazerem programas porque, para escreverem as normas em código técnico, precisam interpretar os textos legais e, nessa hermenêutica de não hermeneutas, a lei ganha colorações especiais. Mesmo que, nesse caminho entre a lei legislada e sua expressão algorítmica, ponham-se intérpretes jurídicos (pela via da especificação das “regras de negócio” agora conhecidas dos juristas), ainda assim a expressão das regras de negócio também dependerá de interpretação pelo programador e estará sujeita à distorção.

Sob a ótica dogmática, que interessa muito de perto aos aplicadores do Direito, a eNorma suscita interessantes avaliações e conseqüências. Sob a ótica teórica, que é aquela à qual tenho dedicado meus estudos, o Direito, enquanto ciência e disciplina, deve arranjar o espaço próprio, no seu arcabouço teórico para esse tipo novo e diferenciado de norma jurídica.

Entendê-lo, com suas especiais características[3], é um esforço grande para o jurista, pela natureza transdisciplinar. Impõe-se um diálogo de saberes (Morin) de difícil concretização nas duas direções: do jurídico para o técnico e deste para o jurídico. O programa de computador é algo a que o jurista não está habituado e uma eNorma é, exatamente, um programa de computador (um algoritmo) que incorpora uma diretiva do Direito para que se autoaplique.

Quem o escreve, em geral, nada sabe de Direito. No caminho de preparação/elaboração de uma eNorma, repita-se, com freqüência atuam pessoas sem saber jurídico e sem a noção do que seja, sob o ponto de vista jurídico-social, adjudicar o Direito. Quer dizer, se existe um Direito que se autoaplica, e que para isso tem de ganhar expressão tecnológica, então há tecnólogos participando da elaboração desse Direito que, orientando um computador (programa é feito para dar ordens a computadores), vai impor-se às pessoas com a força do Estado.

Os especialistas jurídicos, das diferentes áreas, estão entendendo que as vidas das pessoas, envolvendo direitos e deveres, estão sendo afetadas crescentemente por algoritmos (programas de computador) que, num processo de interação reativa (quando uma máquina interage com uma pessoa), dão formalidade jurídica a relações das mais variadas espécies. A chamada internet das coisas (IoT) vai levar esse fenômeno ao limite.   No âmbito privado ou no âmbito público, essa softwarização é intensa e requer, de todos, um entendimento das transformações provocadas pelas tecnologias da informação e da comunicação em todos os âmbitos. Por isso, o esforço para dar visibilidade aos algoritmos e seus papeis na sociedade é importante.

Mas é na relação do Estado, enquanto ordem jurídica (Kelsen), com seus cidadãos, que o problema se agudiza. A atuação do Estado, que deve acontecer nos limites estritos das permissões legais e prévias com submissão aos mais variados tipos de processo, exige que a colocação da norma em automovimento seja muito bem definida.

No constitucionalismo ocidental, afirmou-se o esquema de gerar a legislação pela atuação de assembléias representativas que, afinal, controlam o Estado. Trata-se da mais clássica e relevante técnica de controle interorgânico prevista para o sistema constitucional, embora se deva admitir, também, uma notória decadência no exercício dessa competência, expressa em técnicas que alguém denominou de “humilhação do parlamento”.  Essa tendência de esvaziamento dos papeis do legislador se exprime num traço novo e muito percebido de fortalecimento do Executivo e de redução dos controles inter e intraorgânicos. A tecnologia amplia drasticamente as possibilidades da referida humilhação do parlamento e abre caminhos de exacerbação de certos Poderes.

Se há a possibilidade tecnológica de geração do Direito que se autoaplica (automação) e se, para isso,  há a necessidade de expressão do Direito em código especial e técnico – capaz de conduzir o computador – então, para os fins e segundo a tradição do Direito e do constitucionalismo ocidental, a passagem da expressão legislativo-normativa para a expressão tecnológico-normativa de autoaplicação tem de ter um iter definido pelo Direito e  que regre a geração final da norma autoaplicadora (eNorma). Se há um processo legislativo (de legislar), um processo judicial (que regra o método de atuação do PJ), um processo administrativo, um processo civil (que regra a aplicação do Direito Civil) e um processo penal (que regra a aplicação do Direito penal), então parece razoável e racional supor um processo  tecnológico que regre a transformação da lei na sua forma autoaplicadora (a eNorma). Um processo regulador da tecnologização do Direito. Sem ele a eNorma não pode pretender legitimidade/validade.


Notas e Referências:

[1] LAWRENCE, Lessig. Code. Version 2.0. New York:Basic Books, 2006. 410p.

[2] CITRON, Danielle Keats. Technological due process. Washington University Law Review. St. Louis, v.85, p. 1249, 2008.

[3] Veja-se o post anterior a este sobre algumas características marcantes das eNormas.


Publicações anteriores

Série Tecnologia e trabalho 1) Relação de trabalho e Uber: desafio (20/01/2017) 2) Uber: juiz mineiro não vê vínculo de emprego na relação (17/02/2017) 3) Uber - do ponto de táxi até o aplicativo: análise sob viés tecnológico (24/02/2017)

Série eProcesso: prática com teoria 1) Um aplicativo pode ser você. Ou melhor que você.  (27/01/2017) 2) A eNorma como instrumento de desvirtuamento do jurídico (03/03/2017) 3) eNorma: o que é isso?  (17/03/2017)

Série Cibersegurança 1) Todos estão tendo de mergulhar na insegurança da era digital  (03/02/2017) 2) Como a internet pode saber mais de nós que nós mesmos? Trump explica. (10/02/2017) 3) Ataques por todos os lados (10/03/2017) 4) A cidadania digital é perigosa? (24/03/2017)


S. Tavares-PereiraS. Tavares-Pereira é mestre em Ciência Jurídica (Univali/SC) e aluno dos cursos de doutoramento da UBA. É especialista em Direito Processual Civil Contemporâneo pela PUC/RS, juiz do trabalho aposentado do TRT12 e, antes da magistratura, foi analista de sistemas/programador. Advogado. Foi professor de direito constitucional, do trabalho e processual do trabalho, em nível de graduação e pós-graduação, e de lógica de programação, linguagem de programação e banco de dados em nível de graduação. Teoriza o processo eletrônico à luz da Teoria dos Sistemas Sociais (Niklas Luhmann). 


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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