Em sede de revisão criminal, poderia o Tribunal modificar a decisão dos jurados? Ou seja, poderia um condenado por crime doloso contra a vida ser beneficiado em revisão criminal?
Essa questão é de extrema relevância e nos remete a um dos fundamentos constitucionais do Júri, especificamente a soberania dos veredictos.
A origem precisa da instituição do júri é incerta, tendo sido suscitadas intensas controvérsias sobre seus precisos contornos históricos.
Alguns estudiosos sustentam a origem mosaica do instituto, que teria surgido entre os judeus do Egito, através de relatos constantes do Pentateuco, sob orientação de Moisés, onde o Conselho dos Anciãos, reunidos sobre árvores, decidia em nome de Deus, garantindo ao acusado amplitude de defesa e cercando o julgamento da necessária publicidade, sem punições predefinidas.
Entretanto, é na Grécia que a maioria dos estudiosos encontra o antepassado mais remoto do júri. Na Grécia, o sistema de tribunais era subdividido em dois importantes órgãos, a Heliéia e o Areópago.
As Heliéias, verdadeiros tribunais populares, em número de doze, eram formadas por quinhentos membros sorteados entre os cidadãos gregos de, no mínimo, trinta anos, de conduta ilibada e não devedores do erário. Os membros das Heliéias eram sorteados pelos Arcontes, magistrados gregos, e perfaziam o número total de seis mil heliastas.
As reuniões ocorriam em praça pública e as decisões se davam por maioria de votos, sendo que o empate implicava em absolvição do acusado. O voto era individual e secreto e os heliastas não podiam discutir entre eles o caso antes do voto.
Havia depoimento de “actoris, testis et reo”. A acusação era ainda, via de regra, particular nos crimes privados (de menor gravidade). Nos “delicta” públicos, (de entidade maior e consequentemente afetando em forma mais direta o interesse público), os cidadãos participavam da acusação em forma direta, imediata. Sendo atingido diretamente interesse estatal, surgia o acusador público.
Na história mais recente, por volta de 1215, o júri foi implantado na Inglaterra, quando o Conselho de Latrão aboliu as ordálias e os juízos de Deus.
No Brasil, a instituição do Tribunal do Júri foi implantada em 1822, para julgar os crimes de imprensa.
Em 1824, na Constituição do Império, passou a compor o Poder Judiciário, cuja competência foi ampliada para julgar as infrações civis e criminais.
A instituição foi mantida na Constituição de 1891 e nas demais Cartas e Emendas Constitucionais brasileiras que a sucederam, à exceção da Constituição de 1937.
Atualmente, na Carta de 1988, dispõe o art. 5º, XXXVIII:
“Art. 5º (...) XXXVIII - é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados:
a) a plenitude de defesa;
b) o sigilo das votações;
c) a soberania dos veredictos;
d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.”
Além dos princípios constitucionais assegurados a todos os julgamentos (devido processo legal, ampla defesa, contraditório etc) o art. 5º, XXXVIII, da Constituição Federal, enumera quatro princípios fundamentais pertinentes ao Tribunal do Júri:
a) Plenitude de defesa: a plenitude de defesa implica no exercício do direito de defesa, pelo acusado, de forma mais abrangente que a ampla defesa, assegurada aos réus em geral, ensejando sua efetiva participação no Tribunal do Júri e possibilitando ao seu defensor lançar mão de todos os argumentos e meios de prova e convencimento dos jurados, ainda que não expressamente previstos em lei.
b) Sigilo das votações: como exceção ao princípio da publicidade dos julgamentos, a votação dos quesitos pelos jurados, no Tribunal do Júri, é feito em sala secreta (atualmente denominada “sala especial”), sendo vedada qualquer forma de comunicação entre eles, que apenas poderão dirigir-se ao Juiz Presidente em caso de qualquer esclarecimento.
c) Soberania dos veredictos: a decisão dos jurados acerca, basicamente, da autoria e materialidade do crime, não pode ser modificada pelo Tribunal superior em grau de recurso. Nada impede, entretanto, que o Tribunal superior considere a decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos (art. 593, III, “d”, CPP).
d) Competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida: essa competência constitucional mínima não pode ser modificada por lei infraconstitucional, podendo, entretanto, ser ampliada para abranger outros delitos.
A revisão criminal, como se sabe, não é um recurso, mas uma ação de caráter desconstitutivo do julgado, que somente pode ser proposta pelo condenado, nas hipóteses previstas no Código de Processo Penal. Inexiste revisão “pro societate”.
Assim, o Tribunal competente para julgar a revisão criminal pode alterar a classificação do crime, reduzir a pena, anular o processo ou mesmo, analisando o feito, absolver o condenado ou confirmar a condenação.
Mas isso seria possível em revisão criminal envolvendo crime doloso contra a vida?
Depende da situação.
Nos processos de competência do Tribunal do Júri, o princípio do duplo grau de jurisdição é limitado pelo princípio da soberania dos veredictos.
Nada impede que o Tribunal anule o julgamento, quando a decisão dos jurados contrariar a prova dos autos, entendendo que o Conselho de Sentença decidiu absolutamente divorciado dos fatos e provas colhidos nos autos.
De outra banda, afora essa hipótese, não pode o Tribunal, por exemplo, dar às provas interpretação divergente, sob pena de violação do princípio da soberania dos vereditos.
Isso porque a apelação lastreada no art. 593, III, “d”, do Código de Processo Penal (decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos) pressupõe, em homenagem à soberania dos veredictos, decisão dissociada das provas amealhadas no curso do processo. Optando os jurados por uma das versões factíveis apresentadas em plenário, impõe-se a manutenção do quanto assentado pelo Conselho de Sentença.
Em mais de uma oportunidade, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça nesse sentido:
"A obrigação do Poder Judiciário, em caso de erro grave, como uma condenação que contrarie manifestamente as provas dos autos, é reparar de imediato esse erro. Por essa razão é que a absolvição do ora paciente (e peticionário, na revisão criminal) é perfeitamente aceitável, segundo considerável corrente jurisprudencial e doutrinária." (STJ - HC 63.290/RJ, Rel. Min. Celso Limongi - Desembargador Convocado do TJ/SP – 6ª Turma - DJe 19.04.2010).
Assim, “ajuizado pedido de revisão criminal contra veredicto proferido pelo Tribunal do Júri, sob o fundamento deste ter sido manifestamente contrário à prova dos autos, ao órgão recursal se permite apenas a realização de um juízo de constatação acerca da
existência ou não de suporte probatório para a decisão tomada pelos jurados integrantes do Conselho de Sentença, somente se admitindo a cassação da decisão caso esta seja flagrantemente desprovida de elementos de prova capazes de sustentá-la.” (STJ – HC 268.563/SP – Rel. Min. Jorge Mussi - 5ª Turma – Dje 05.06.2013)
Conclui-se, pois, que é vedada ao Tribunal a emissão de qualquer juízo de valor acerca da justiça da decisão emitida pelo Tribunal do Júri ou sobre a força probatória de determinados elementos de prova produzidos nos autos, ainda que em sede de revisão criminal, proposta contra a condenação pela corte popular, pois à instância recursal nos processos de competência do Tribunal do Júri cabe tão-somente a correção de arbitrariedades nos respectivos julgamentos, em respeito ao princípio da soberania dos veredictos do Júri Popular.
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