Inviolabilidade do domicílio e crimes permanentes: sigamos as regras do jogo!

15/09/2017

Por Alexandre Hardt Bortolotto – 15/09/2017

Mesmo aqueles que não têm uma atividade laboral e/ou acadêmica voltada à seara jurídica sabe ou já ouviu falar que “a casa é asilo inviolável do indivíduo”.

Tamanha a importância da intimidade no dia a dia e na vida das pessoas, que praticamente toda a sociedade tem, em maior ou menor grau, conhecimento desse direito.

O respeito à intimidade por parte do Estado dá a proporção e a natureza desse próprio Estado.

A Constituição Federal atualmente em vigor dispõe no inciso XI do artigo 5º que “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem o consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro ou, durante o dia, por determinação judicial”.

Como visto, a própria norma constitucional excepciona a inviolabilidade do domicílio nas hipóteses nela previstas.

A situação mais corriqueira e polêmica diz respeito às circunstâncias envolvendo flagrante delito. Não é incomum agentes da segurança pública procederem à entrada em domicílios sem ordem judicial sob a suspeita de que no local há a prática de crimes.

Quando o flagrante é inequívoco e de possível conhecimento daqueles que estão na parte externa do domicílio, percebe-se claramente a incidência da exceção prevista no dispositivo constitucional (flagrante delito).

Não se ignora, contudo, a utilização da referida exceção por parte dos agentes do Estado também quando não se têm a certeza quanto à flagrância. Exemplo disso é a violação do domicílio sob a suspeita de tráfico de drogas (crime permanente). Viola-se a intimidade sem uma certeza da prática do crime e, portanto, sem a certeza do estado flagrancial que justificaria essa violação.

Permitir que haja uma violação a direito fundamental (intimidade) sem limites à atuação estatal vai de encontro àquilo que se espera de um Estado democrático de Direito. Se de um lado os direitos fundamentais não são absolutos, de outro também não são ilimitadamente flexibilizáveis.

Nesse sentido, preleciona Renato Brasileiro de Lima[1] que: “para que a polícia possa adentrar em uma residência, sem mandado judicial, exige-se aquilo que se costuma chamar de ‘causa provável’ (no direito norte-americano, ‘probable cause’), ou seja, quando os fatos e as circunstâncias permitiriam a uma pessoa razoável acreditar ou ao menos suspeitar, com elementos concretos, que um crime está sendo cometido no interior da residência”.

Continua dizendo que “a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, portanto, ‘quando amparada em fundadas razões’, devidamente justificadas ‘a posteriori’, que indiquem que, dentro da ‘casa’, havia situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou autoridade, e de nulidade dos atos praticados. Nessa medida, deve ser considerada arbitrária a entrada forçada em domicílio sem uma justificativa conforme o direito, ainda que, posteriormente, seja constatada a existência de situação de flagrante no interior daquela casa”.

No mesmo sentido é o entendimento majoritário da jurisprudência nacional. Cite-se como exemplo a recentíssima decisão da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal – STF no Habeas Corpus nº 138.565 que concedeu a ordem para trancar ação penal contra um homem que teve sua residência em Americana (SP) vasculhada por policiais civis sem ordem da Justiça, uma vez que não havia sequer fundada suspeita de que havia no local a ocorrência de flagrante delito.

Havemos de convir, no entanto, que em algumas situações torna-se contraproducente exigir-se que a autoridade policial represente pela busca e apreensão ao juízo competente, pois o suposto crime que se deseja cessar exige imediatidade. Não é viável, sob pena de se ver frustrada a medida de busca e apreensão, aguardar os trâmites burocráticos de uma decisão judicial.

Mas então como limitar essa atuação por parte do Estado?! O constitucionalmente consagrado direito à inviolabilidade do domicílio e, reflexamente, à intimidade estaria ao alvedrio dos agentes do Estado?!

O raciocínio que se espera e ao qual me proponho é simples.

Como dito, uma busca e apreensão realizada sem mandado judicial não pode ser descartada, porque sapientes que somos das situações práticas e concretas que exigem imediatismos incompatíveis com a burocracia inerente a uma decisão judicial.

Contudo, a análise posterior de uma busca e apreensão realizada sem mandado judicial deve ater-se às circunstâncias existentes no momento anterior à efetivação da medida. Ou seja, o juízo competente irá analisar se acaso houvesse sido representada pela autoridade policial a busca e apreensão, haveria ou não a presença dos requisitos legais autorizadores da medida. Se sim, a busca e apreensão é legal; se não, é ilegal. Sendo ilegal, deve a prova apreendida ser considerada ilícita e inadmitida no processo, bem como as provas dela derivadas (artigo 157 do Código de Processo Penal).

Não há que se legitimar a medida apenas com base no resultado. Os fins não podem justificar os meios. A análise a ser feita é com base nas circunstâncias pretéritas à violação ao domicílio. A questão é verificar se havia ou não a presença dos requisitos legais autorizadores da busca e apreensão, embora referida constatação tenha se operado após a efetivação da medida.

É seguir as regras do jogo!

Nas palavras de Jorge Figueiredo Dias: “diz-me como tratas o arguido, dir-te-ei o processo penal que tens e o Estado que o instituiu”.


Notas e Referências:

[1] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único – 4. ed. ver., ampl. e atual. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2016. Pág. 45.


Alexandre Hardt Bortolotto. Alexandre Hardt Bortolotto é advogado criminalista. Bacharel e pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal pela Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas de Cascavel – Univel. É membro suplente do Conselho Comunitário de Segurança de Toledo/PR – CONSEG e membro da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas – ABRACRIM.


Imagem Ilustrativa do Post: Lighting – Night Time Reading // Foto de: Tyler Nienhouse // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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