Coluna Advocacia Pública e outros temas jurídicos em Debate / Coordenadores Weber Luiz de Oliveira e José Henrique Mouta
O tema da Execução Fiscal Administrativa já foi objeto de reflexões nesta Coluna[i].
Recente decisão (07.04.2021) do Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário 627.106, de relatoria do Min. Dias Toffoli, reflete e contribui para o debate, acadêmico e legislativo, acerca da desjudicialização da Administração Pública através da Execução Fiscal Administrativa.
No julgamento do referido recurso fixou-se a tese do Tema 249 nos seguintes termos:
“É constitucional, pois foi devidamente recepcionado pela Constituição Federal de 1988, o procedimento de execução extrajudicial, previsto no Decreto-lei nº 70/66”
Com a Execução Extrajudicial Hipotecária, nos termos dos arts. 31 e 32 do Decreto-Lei 70/1966, há efetivo exercício de uma autotutela privada de direito creditício. Uma outra forma de execução extrajudicial está sendo debatida em relação a adoção no Brasil da figura dos Agentes de Execução, em um contexto de desjudicialização da execução civil[ii].
No mesmo sentido da Execução Extrajudicial Hipotecária, na Execução Fiscal Administrativa há efetivo exercício de uma autotutela, contudo, pública, sobre o crédito tributário inadimplido, com diversos projetos de lei já apresentados[iii].
Em pesquisa em andamento com um esboço inicial sobre a Execução Fiscal Administrativa[iv] defendemos a possibilidade jurídico-constitucional da adoção de tal forma de ação de direito material, de onde extraímos alguns excertos para o presente texto.
A execução fiscal visa à satisfação de obrigações pecuniárias de natureza pública, sendo a administrativa realizada no interno da Administração Pública, podendo ser considerada, igualmente, um tipo de processo para solução de conflitos de interesse público, já que o processo de interesse público pode ser visto como “sinônimo de processo civil voltado à resolução de conflitos de interesses originários da aplicação do direito material público”[v].
O conceito de interesse público e o seu tratamento processual não pode se restringir tão-somente às demandas coletivas, mas, de igual modo, às demandas individuais que se massificam no Estado e na sociedade, de forma que o seu tratamento deve objetivar uma resolução especializada do litígio[vi].
Afinal, uma sociedade em que se pretende o exercício de uma cidadania plena (CF, art. 1º, II) deve se interessar e incentivar a adoção de técnicas direcionadas ao cumprimento e satisfação das obrigações públicas – tanto pelas pessoas (físicas e jurídicas), quanto pelo Estado -, porquanto retornam à mesma diretamente sob a forma de prestação de serviços públicos, que se esperam eficientes, já que “tributos cobrados sem contrapartida efetiva dos poderes públicos e sem o consentimento do povo, são causa de insatisfação popular”[vii].
A resolução desse interesse público no adimplemento dos créditos públicos pela Lei de Execução Fiscal não mais atende satisfatoriamente, obtendo resultados pífios, conforme atestam, ano a ano, os Relatórios Justiça em Números do CNJ.
O interesse público então tutelado deve ser concretizado através de outros instrumentos que tragam eficiência e eficácia ao procedimento, como a execução fiscal administrativa.
Assim, após o término do procedimento de constituição do crédito tributário, realizado no âmbito do processo administrativo tributário, inicia-se nova fase, com procedimentos a serem implementados no intuito de busca e excussão de bens do devedor.
Há, portanto, obrigatoriedade de judicializar a execução fiscal[viii]?
Ou melhor, o direito de “ação” processual é impositivo?[ix]
Parece adequado afirmar que não, porquanto a ação, “antes de um dever, é um ato voluntário e livre, que pode não ser exercido se os interessados conseguiram resolver o seu conflito por outro meio, ou se o deixaram, inclusive, deliberadamente sem solução”[x].
O Supremo Tribunal Federal, em relação à lei da arbitragem, Lei n. 9.307, de 23 de setembro de 1996, assentou entendimento que o acesso à justiça é um direito, e não uma obrigação[xi], de modo que é constitucional a adoção de meios de solução extrajudiciais de controvérsias, sendo, no ponto, alterada a destacada lei para, de igual modo, possibilitar que a Administração Pública se submeta à arbitragem. A definição do Tema 249 pelo STF assenta esta desjudicialização.
Ora, se assim é, qual a razão jurídica de não se poder executar administrativamente os créditos tributários?
Evidente, por óbvio, que eventuais lesões ou ameaças a direito (CF, art. 5º, XXXV) estarão sob o amparo do Poder Judiciário, por intermédio de proposituras de ações judiciais.
Portanto, a destituição da propriedade mediante a participação num procedimento em contraditório não é função exclusiva do Poder Judiciário, não se efetiva apenas em um processo jurisdicional.
A tese assentada no Tema 249 pelo STF vai ao encontro desses fundamentos.
A corroborar legislativamente essa assertiva, veja-se que, novamente em âmbito privado, a Lei Federal n. 9.514, de 20 de novembro de 1997, que dispõe sobre a alienação fiduciária de coisa imóvel, autoriza que o credor concretize a propriedade em seu nome, com realização de leilão do bem sem que o Poder Judiciário seja instado a intervir. A constitucionalidade desse procedimento extrajudicial executório está sendo debatido no Tema 982 pelo STF. A solução, a seguir a racionalidade do Código de Processo Civil de 2.015, dos tribunais manterem sua jurisprudência íntegra, estável e coerente, nos leva a conclusão que haverá também o reconhecimento, em julgamento de mérito de repercussão geral, da constitucionalidade de tal forma privada executiva.
Resta conjecturar, por fim, se este entendimento jurisprudencial será igualmente reafirmado pelo Supremo Tribunal Federal quanto à Execução Fiscal Administrativa, a tempo e modo oportunos.
Certo é que o julgamento do Tema 249 reflete diretamente na evolução jurisprudencial relativa à desjudicialização da execução, privada ou pública.
Notas e Referências
[i] Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/execucao-fiscal-administrativa-por-weber-luiz-de-oliveira. Acesso 06 mai 2021.
[ii] A propósito Projeto de Lei 6.204/2019, do Senado Federal: “Dispõe sobre a desjudicialização da execução civil de título executivo judicial e extrajudicial; altera as Leis nª a nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996, a nº 9.492, de 10 de setembro de 1997, a nº 10.169, de 29 de dezembro de 2000, e a nº 13.105 de 16 de março
de 2015 – Código de Processo Civil”.
[iii] O último Projeto de Lei é o 4.257/2019 do Senado Federal: “Modifica a Lei nº 6.830, de 22 de setembro de 1980, para instituir a execução fiscal administrativa e a arbitragem tributária, nas hipóteses que especifica.”
[iv] OLIVEIRA, Weber Luiz de. Ação de direito material e execução fiscal administrativa no contexto da desjudicialização: (im)possibilidades constitucionais. Revista Eletrônica Direito e Política, Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica da UNIVALI, Itajaí, v.15, n.2, 2º quadrimestre de 2020. Disponível em: https://siaiap32.univali.br/seer/index.php/rdp/article/view/16867. Acesso 06 mai 2021.
[v] BUENO, Cássio Scarpinella. Processo civil de interesse público, In, Processo civil e interesse público: o processo como instrumento de defesa social, org. Carlos Alberto de Salles, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 24. Importa esclarecer que o autor se refere a processo civil jurisdicional. Nada obstante, a ideia de processo como instrumento e concretização do interesse da coletividade é aqui adotada para subsidiar sua aplicação no processo civil administrativo de interesse público, tal como a execução fiscal administrativa.
[vi] CUNHA, Leonardo José Carneiro da. O regime processual das causas repetitivas, In: Revista de Processo, vol. 179, ano 35, p. 139-174, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, jan. 2010.
[vii] SEVEGNANI, Joacir. A resistência dos tributos no Brasil: Estado e Sociedade em conflito, Florianópolis: Conceito Editorial, 2009, p. 212. Sobre a relação entre o interesse estatal no recolhimento de tributos e a resistência da sociedade, Sevegnani contextualiza na obra referenciada, quanto a essa resistência, os seguintes pressupostos: elevada carga tributária, injustiças causadas por renúncias fiscais, modelo regressivo de tributação, centralização das receitas tributárias, reduzida transparência administrativa, complexidade do sistema tributário, corrupção e crise de valores e serviços da dívida pública. A respeito dos caminhos para superação dessa resistência fiscal, aponta por uma consolidação do Estado Democrático de Direito, pelo fortalecimento da solidariedade social, por uma contribuição da política jurídica e, por fim, pelo papel da educação fiscal.
[viii] Conforme referido por Carlos Francisco Lopes Melo, diversos doutrinadores entendem pela obrigatoriedade da judicialização da execução fiscal, tais como, Hugo de Brito Machado, José Eduardo Soares de Melo e Sacha Calmon Navarro Coelho. (Execução fiscal administrativa à luz da Constituição Federal. Disponível em: http://www.agu.gov.br/page/download/index/id/8356880. Acesso 16 jul. 2019).
[ix] Oportuna, novamente, a lição de Pontes de Miranda: “Porém há um ponto que ainda merece referência. A exigibilidade através de órgãos do Estado ou de corpo que tutele o direito (e. g., juízo arbitral, obrigatório ou não) não se limita à justiça. Quando se fala de acionabilidade e de exigibilidade judicial como sinônimos, parte-se do quod plerumque fit. Somente com essa advertência é possível usar-se a sinonímia. Os órgãos estatais não-judiciais e os corpos não-estatais (se o monopólio estatal da tutela jurídica o permite) apresentam espécies de exigibilidade que não é a auto-satisfativa. Também ocorre, por vezes, que a pretensão perde apenas essa via (administrativa, arbitral, insertiva no orçamento) e conserva a ação perante a justiça. Esta é, portanto, espécie (ou uma das direções) da ação e leva a ‘ação’, processual” (Tratado das ações, tomo 1, Campinas: Editora Bookseller, 1998., p. 124).
[x] CALMON DE PASSOS, José Joaquim. A ação no direito processual brasileiro, Coleção “Obras de J. J. Calmon de Passos – Clássicos”, orgs. Fredie Didier Jr. e Paula Sarno Braga, Salvador : Editora Juspodivm, 2014, p. 72.
[xi] Constitucionalidade reconhecida pelo STF no julgamento da homologação de Sentença Estrangeira n. 5.206-7, j. em 12.12.2001, relator Min. Sepúlveda Pertence.
Imagem Ilustrativa do Post: Worshipful Master's Gavel // Foto de: Bill Bradford // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/mrbill/3355278756
Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode