A questão que se coloca para discussão no presente artigo é a seguinte: produto com data de validade vencida automaticamente está impróprio para o consumo? A partir daí, expor à venda, ter em depósito para vender ou vender produto nessa condição já configuraria crime contra as relações de consumo, independentemente da constatação pericial da impropriedade para o consumo do produto ou mercadoria?
A celeuma é tormentosa.
A dificuldade de equacionamento mais de acentua à vista do Princípio da Ofensividade (também chamado de Princípio do Fato ou Princípio da Exclusiva Proteção do Bem Jurídico).
Segundo esse princípio, não há crime quando a conduta não tiver oferecido, ao menos, um perigo concreto, efetivo, comprovado, ao bem jurídico. A partir daí, o Direito Penal deve se ocupar apenas das condutas que apresentem um perigo real (ataque efetivo e concreto) ao bem jurídico.
Esse princípio tem como primordial função limitar a pretensão punitiva do Estado, de modo a não haver proibição penal sem conteúdo ofensivo aos bens jurídicos.
Portanto, segundo esse princípio, não seriam admitidos os crimes de perigo abstrato.
Perigo abstrato é o risco presumido em face de determinada conduta do agente.
Diz-se perigo concreto quando, para a configuração do risco, há necessidade de prova.
De acordo com o disposto no art. 7º da Lei nº 8.137/90, constitui crime contra as relações de consumo, dentre outros, “vender, ter em depósito para vender ou expor à venda ou, de qualquer forma, entregar matéria-prima ou mercadoria, em condições impróprias ao consumo”, sendo punido com pena de detenção, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, ou multa.
O Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), por seu turno, estabelece expressamente em seu art. 18, § 6º, que são impróprios ao uso e consumo “os produtos cujos prazos de validade estejam vencidos”.
Percebe-se, pois, que, da simples conjugação dos dispositivos referidos, um produto com data de validade vencida é impróprio para o consumo, estando o agente que o expuser à venda, que o tiver em depósito para vender ou que o vender incurso em crime contra as relações de consumo e sujeito a uma pena de detenção de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, ou multa.
O Superior Tribunal de Justiça, durante muito tempo, seguiu essa orientação, no sentido de que “o tipo do inciso IX do art. 7º, da Lei nº 8.137/80 trata de crime formal, bastando, para sua concretização, que se coloque em risco a saúde de eventual consumidor da mercadoria. Cuidando-se de crime de perigo abstrato, desnecessária se faz a constatação, via laudo pericial, da impropriedade do produto para consumo. Precedentes. Recurso conhecido pela alínea ‘a’ e desprovido” (STJ – REsp 307.415/SP – Rel. Min. Gilson Dipp – 5ª T – j. 3-10-2002 – DJ 11-11-2002, p. 246).
Na mesma linha era o entendimento do Supremo Tribunal Federal: “A tipificação da figura penal definida no art. 7º, IX, da Lei nº 8.137/90, por ser norma penal em branco, foi adequadamente preenchida pelo art. 18, § 6º, I, do CDC, que define como impróprio ao uso e consumo produto cujo prazo de validade esteja vencido. A exposição à venda de produto em condições impróprias ao consumo já configura o delito, que é formal e de mera conduta, consumando-se com a simples ação do agente, sendo dispensável a comprovação da improbidade material” (STF – RT 781/516).
Ocorre que o Superior Tribunal de Justiça, nos últimos tempos, vem modificando radicalmente seu entendimento sobre esse crime, passando a exigir perícia para a demonstração da materialidade delitiva, ou seja, para a comprovação da impropriedade ao consumo do produto, inobstante esteja com a data de validade vencida.
Nesse sentido, nos autos do RHC 91.502/SP, o Ministro Joel Ilan Paciornik decidiu que: “A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça se firmou no sentido de que a conduta tipificada no art. 7º, parágrafo único, inciso IX, da Lei 8.137/90 - expor à venda produtos impróprios para o consumo - deixa vestígios, razão pela qual a perícia é indispensável para a demonstração da materialidade delitiva, nos termos do art. 158 do Código de Processo Penal. Precedentes. A realização de mero laudo de constatação não é suficiente para atestar que a mercadoria é efetivamente imprópria para o consumo, sendo imprescindível a realização de perícia técnica. Precedente. Recurso em ‘habeas corpus’ ao qual se dá provimento para determinar o trancamento da ação penal por falta de justa causa.” (STJ - RHC 91.502/SP - Rel. Min. Joel Ilan Paciornik – 5ª T – j. 12-12-2017 – DJe 01-02-2018).
No mesmo sentido: "Da leitura do artigo 7º, inciso IX, da Lei 8.137/1990, percebe-se que se trata de delito contra as relações de consumo não transeunte, que deixa vestígios materiais, sendo indispensável, portanto, a realização de perícia para a sua comprovação, nos termos do artigo 158 do Código de Processo Penal" (STJ - RHC 49.221/SC, Rel. Min. Jorge Mussi, 5ª T - DJe 28-4-2015).
Ainda: "Inexistente prova pericial, produzida diretamente sobre os produtos alimentícios apreendidos, falta justa causa para a persecução penal, sendo insuficiente concluir pela impropriedade para o consumo exclusivamente em virtude da ausência de informações obrigatórias na rotulagem do produto e/ou em decorrência do prazo de sua validade estar vencido". (STJ - RHC 69.692/SC, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz – 6ª T - DJe 13/6/2017).
Portanto, é forçoso concluir que não mais se pode considerar o crime do art. 7º, IX, da Lei nº 8.137/90 como sendo de perigo abstrato, presumido, bastando para a sua configuração tão somente a expiração do prazo de validade do produto exposto à venda ou em depósito para vender.
Assim, é mister, para a configuração do delito, sob pena de ausência de justa causa para a ação penal e consequente trancamento pela via anômala do “habeas corpus”, que seja averiguada, mediante perícia (art. 158 do CPP) a impropriedade ao consumo do produto (elemento normativo do tipo), comprovando-se pericialmente a materialidade do delito.
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