Breves apontamentos sobre os impactos da Lei nº 14.195/2021: Desburocratização e transformação digital

17/09/2021

Projeto Elas no Processo na Coluna O Novo Processo Civil Brasileiro / Coordenador Gilberto Bruschi

Pretende-se com o presente trabalho tecer alguns breves apontamentos sobre algumas das novidades introduzidas pela Lei nº 14.195, publicada em 26 de agosto de 2021, nomeada por alguns como “Lei do Ambiente de Negócios”.

Trata-se de lei que traz inúmeras alterações sobre diversos diplomas legais em áreas completamente distintas, porém, interligadas por dois propósitos comuns: a desburocratização dos meios e a promoção da transformação digital.

Ao longo de todo este período de pandemia, grande parte dos atos normativos publicados voltaram-se para a regulamentação sobre a inserção das novas tecnologias nas rotinas de trabalho remoto ao lado da simplificação das relações, que constitui pressuposto básico para o aumento da eficiência, como forma de remediar as necessidades havidas em um cenário de urgência e de calamidade.

De 2019 para cá, restou mais do que evidente que a até então cultuada liturgia e o excesso de formalismo no meio jurídico demonstraram-se como empecilhos desnecessários num cenário de instabilidade e de restrições na vida cotidiana decorrentes da pandemia, que até hoje se perpetua na vida em sociedade [1].

Não se sabe ao certo quando haverá – e se de fato, haverá – um retorno das atividades presenciais sem qualquer restrição. Portanto, deve-se trabalhar com a realidade e a certeza existente, que no momento, reside na utilização de novas tecnologias e inovações que permitam o trabalho remoto, assim como outras facilidades que permitam a continuidade das atividades rotineiras ao longo de uma pandemia.

Do ponto de vista legislativo, percebe-se que várias das disposições normativas que surgiram em caráter emergencial e temporário estão aos poucos sendo acomodadas no ordenamento como de caráter permanente.

Trata-se de um fenômeno bastante interessante, que consiste na consolidação de normas jurídicas decorrentes de uma situação excepcional como normas estruturantes e quem sabe até que se consagrem como novas normas fundamentais.

A justificativa para esta mudança de perspectiva reside no fato de que se teria vislumbrado em uma norma jurídica de caráter temporário, uma utilidade que ultrapassou o mero atendimento de uma necessidade emergencial; os seus efeitos, na prática, demonstraram vantagens igualmente auferíveis em situações de normalidade.        

Em outras palavras, é como se as normas emergenciais tivessem passado por um estágio probatório na pandemia, e assim apresentassem resultados surpreendentes, que as erigissem como potenciais normas perenes.

O momento da pandemia, assim como qualquer situação extrema, é uma grande oportunidade para inovar. Diante da ausência de soluções para lidar com novos problemas, abre-se um espaço para a criatividade e a ousadia. Até quem resista às inovações, em uma situação anormal de necessidade, demonstra-se mais suscetível de tentar algo diferente.

Esta experiência, por mais que seja arriscada, permite a observação de novos instrumentos e suas potencialidades. No meio disso tudo, surgem boas surpresas.

Assim retrata-se o espírito de inovação decorrente da pandemia. Com ele, nota-se uma avalanche de medidas legislativas orientadas para a regulamentação das novas tecnologias, inovações e outros mecanismos potencializadores da eficiência e da desburocratização. Este é o “pano de fundo” da Lei nº 14.195/2021, assim como é o da Lei nº 14.129 de 29 de março de 2021 (Lei do Governo Digital), da Lei Complementar nº 182/2021 de 1º de junho de 2021 (Marco Legal da Startups e do Empreendorismo Inovador), e de tantas e tantas Resoluções do Conselho Nacional de Justiça [2].

Neste contexto, a Lei nº 14.195/2021 traz em seus dispositivos, os seguintes pontos que merecem destaque: 1) Facilitação para abertura de empresas; 2) Proteção de acionistas minoritários, facilitação do comércio exterior, tradutor e intérprete público, e desburocratização empresarial; 3) Autorização para instituir, no âmbito do Poder Executivo Federal, sob a governança da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, o Sistema Integrado de Recuperação de Ativos (Sira); 4) Racionalização processual.

Passa-se, então, a discorrer brevemente sobre cada um deles, prezando-se a abordagem em torno da desburocratização e da transformação digital.

 

Facilitação para abertura de empresas

No capítulo II da Lei nº 14.195/2021 destaca-se a ampliação sobre a abrangência da plataforma tecnológica de integração da Redesim - Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios, regulada pela Lei 11.598/2007, fazendo-se constar expressamente os “produtos artesanais alimentícios, inclusive de origem animal ou vegetal, e as obras de construção civil, de empresários e de pessoas jurídicas”.

Vale destacar que a Redesim representa uma rede de sistemas informatizados necessários para o registro e a legalização de empresas e negócios, tanto no âmbito da União como dos Estados e Municípios, tendo como principal escopo permitir a padronização dos procedimentos, o aumento da transparência e a redução dos custos e dos prazos de abertura de empresas [3]. Trata-se, portanto, de mecanismo que se coaduna com a disposição prevista no art. 3º, e incisos, da Lei do Governo Digital, revelando-se mais um passo adiante, rumo à interoperabilidade de sistemas.

Interessante a disposição inserida no art. 4º na Lei 11.598/2007, na qual se reforça a necessidade de os órgãos e entidades envolvidos no processo de registro e de legalização de empresas manterem à disposição dos usuários, de forma gratuita e pela internet, ficha cadastral simplificada com os dados da empresa.

No art. 6º-A da referida lei, passa-se a mencionar a possibilidade de emissão automática de alvará de funcionamento e licenças sem análise humana, ou seja, exclusivamente por intermédio do sistema responsável pela integração dos órgãos e das entidades de registro. Aqui depreende-se mais uma autorização legislativa expressa para um mecanismo de automação funcionar de maneira independente e não supervisionada, o que representa um grande avanço em termos de transformação digital. Existem outros exemplos de emissão de certificados automatizados com a chancela do Poder Público, como é o caso da certidão de situação cadastral no Cadastro de Pessoas Físicas e Jurídicas [4] e certidão de quitação eleitoral [5].

Importante salientar que a automação para a emissão de certificados validados pelo Poder Público tem por objetivo facilitar o acesso e desburocratizar a obtenção destes documentos declaratórios, contudo, não afasta a possibilidade de os agentes públicos exercerem os seus poderes de fiscalização e não afastam a exigência de outras formalidades e requisitos que estejam sob a competência de outro órgão ou ente da federação, ou que estejam previstos em lei específica (art. 6º-A, §§ 4º e 6º, da Lei 11.598/2007).

Por fim, contempla-se a utilização de variados recursos tecnológicos como a assinatura eletrônica (art. 6º-A, § 5º, da Lei 11.598/2007), aplicativos de pesquisa on-line (art. 11, inciso II, da Lei 11.598/2007), serviços de pagamento on-line (art. 11, inciso VII, da Lei 11.598/2007) e digitalização de documentos físicos (art. 57, da Lei 11.598/2007).

 

Proteção de acionistas minoritários, facilitação do comércio exterior, tradutor e intérprete público, e desburocratização empresarial

No capítulo III da Lei nº 14.195/2021 as modificações legislativas objetivam promover um incremento sobre a proteção dos acionistas minoritários, girando em torno de questões relativas à atribuição do direito de voto plural em determinadas classes de ações, com as devidas restrições. Em termos de transformação digital, especificamente, destaca-se a redação do art. 100, § 3º, da Lei das SA, que autoriza a substituição de livros sociais físicos por registros mecanizados ou eletrônicos.

A facilitação do comércio exterior, por seu turno, é tratada no capítulo IV da Lei nº 14.195/2021 e se constitui por meio de medidas que viabilizam a utilização de soluções tecnológicas eficientes, desburocratizando a obtenção de licenças, autorizações e outras exigências administrativas para importações ou exportações.

Neste contexto, destaca-se a redação conferida ao art. 8º, que estabelece a solução de guichê único eletrônico [6] para o encaminhamento de solicitações à administração pública federal que se demonstrem necessárias para a importação e exportação de bens, assim como a possibilidade de transações financeiras eletrônicas para o recolhimento tributário correspondente.

Importante se faz a disposição prevista no art. 9º, segundo a qual é vedada a exigência por parte da Administração Pública Federal para que sejam preenchidos formulários em papel ou por outros meios distintos da solução de guichê único eletrônico.

A disponibilização de uma única plataforma de acesso a documentos e informações minimiza significativamente a ocorrência de encaminhamentos errôneos ou de providências que não atendam às condições e requisitos estabelecidos pelo Poder Público.

Neste sentido, é a disposição prevista no art. 10, § 2º, que expressamente estabelece que “o guichê único eletrônico deverá exibir em seu sítio eletrônico todas as licenças, autorizações, ou exigências administrativas, como requisitos a importações ou exportações”. Há claramente aqui a intenção de se estabelecer um ponto focal para que se concentre todo o procedimento, assim como todas as informações necessárias para as operações de importação e de exportação, prática que tem sido constatada em diversas outras áreas [7].

Outro aspecto que merece atenção e se relaciona com a abertura do comércio exterior, assim como também ao movimento de integração, do ponto de vista socioeconômico, por meio da ruptura das barreiras geográficas com a intensificação da comunicação via internet, está na regulamentação da profissão de tradutor e intérprete público, prevista no capítulo VII da Lei nº 14.195/2021.

Diante desta conjuntura, em que a integração potencializada pela internet aproxima as pessoas para a consolidação de relações jurídicas independente de onde estejam, a figura do profissional tradutor e do intérprete público revela especial importância para que se rompa a barreira linguística, seja nas negociações envolvendo estrangeiros, como também naquelas em que haja alguma pessoa portadora de deficiência. Veja-se que o art. 23 menciona que o tradutor e o intérprete público poderão se habilitar e se registrar para um ou mais idiomas estrangeiros, ou, ainda, em Língua Brasileira de Sinais – Libras.

O tradutor e o intérprete público são equiparados a funcionários públicos para fins de responsabilização civil e criminal (arts. 28 e 29) e, por isso, devem ser aprovados em concurso para aferição de aptidão (art. 22, inciso IV) estando autorizados para realizarem os seus atos em meio eletrônico (art. 33).

Por fim, no que tange à desburocratização empresarial, o capítulo IX da Lei nº 14.195/2021 salientam-se três pontos.

O primeiro deles refere-se à expressa autorização para as pessoas jurídicas de direito privado realizarem assembleias gerais por meios eletrônicos, que passa a estar prevista no art. 48-A do Código Civil [8].

O segundo consiste na previsão de prescrição intercorrente observando o mesmo prazo de prescrição da pretensão, mediante a inclusão do art. 206-A do Código Civil, que, por sua vez, rege as causas de impedimento, suspensão e de interrupção incidentes sobre a sua contagem.

O terceiro e último ponto em destaque revela, a partir da redação do art. 1.142, §§ 1º a 3º do Código Civil, o reconhecimento em lei do estabelecimento virtual, que assim poderá ser definido no endereço informado para fins de registro, podendo coincidir com o endereço do empresário individual ou de um dos sócios da sociedade empresária.

Ressalte-se aqui mais uma vez a preocupação de se instrumentalizar a dinâmica do comércio eletrônico, que, em grande parte, envolve sujeitos que possuem o estabelecimento virtual.

 

Sistema Integrado de Recuperação de Ativos (Sira)

Eis aqui uma das maiores novidades e conquistas para a eficiência obtida a partir do processo de transformação digital. O Sira, constituído de um conjunto de instrumentos, mecanismos e iniciativas voltados para a identificação e localização de bens e de devedores, bem como a constrição e a alienação de ativos, representa um largo passo em direção à resolução de dois grandes problemas enfrentados pelo Poder Judiciário e pela Administração Pública Federal: a alta taxa de congestionamento nas execuções fiscais, e o alto índice de insucesso na recuperação de ativos.

Como muito bem descrito no art. 14 da Lei nº 14.195/2021, são objetivos do Sira, em síntese: promover a redução dos custos de transação de concessão de créditos mediante aumento do índice de efetividade das ações envolvendo a recuperação de ativos; subsidiar a tomada de decisão, nos processos de recuperação judicial de créditos públicos ou privados, e, finalmente, promover a estruturação de dados garantindo um maior sucesso na recuperação de ativos.

Observe-se que, corroborando toda a linha de raciocínio descrita no presente trabalho, o art. 15 destaca, como princípios do Sira: efetividade e eficiência (inciso I); transformação digital e estímulo ao uso de soluções tecnológicas (inciso II); racionalização e sustentabilidade econômico-financeira das soluções de tecnologia da informação e comunicação de dados (inciso IV); e ampla interoperabilidade e integração com os demais sistemas (inciso V).

Outra novidade que merece especial atenção e se demonstra extremamente salutar para o atingimento dos objetivos até então elencados está na autorização para instituição de um Cadastro Fiscal Positivo, nos termos do art. 17 da Lei em análise.

O Cadastro Fiscal Positivo poderá ser instituído pelo Poder Executivo federal, sob governança da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional – PGFN. Com sua criação, será propiciada a construção de um ambiente de confiança entre os contribuintes e a administração pública, além de um ambiente de total transparência com possibilidade de previsibilidade sobre as ações estatais. (art. 17, incisos I e II)

A confiança e a transparência são pressupostos essenciais para um cenário que favoreça a utilização de mecanismos de solução consensual para eventuais conflitos tributários, com grande potencial para que se promova uma redução dos índices de litigiosidade (art. 17, inciso III).

Ao lado de tais vantagens, a formação do Cadastro Fiscal Positivo pode aumentar a eficiência sobre a gestão de recursos, dos riscos, e dos gargalos fiscais (art. 17, incisos IV, V e VI).

Por fim, no parágrafo único do art. 17, evidencia-se um incentivo à cooperação interinstitucional por intermédio da autorização concedida à PGFN para estabelecer convênio com Estados, com Municípios e com o Distrito Federal para o compartilhamento das informações que integrem o Cadastro Fiscal Positivo.

Existem outras menções ao longo das disposições sobre o Sira que devem ser frisadas, uma vez que trarão impactos relevantes no cenário processual.

Destarte, a previsão no inciso I do art. 18, relaciona-se com a princípio estabelecido no inciso III, do art. 17, para a criação de condições para a redução da litigiosidade via métodos consensuais de resolução de conflitos e flexibilizações procedimentais (art. 18, incisos II a IV). Trata-se da criação de canais de atendimento diferenciado para que o contribuinte possa fazer pedidos de transação no contencioso judicial ou na cobrança da dívida ativa da União.

Parece que tal previsão refere-se exatamente à plataforma Regularize, implementada pela PGFN no sítio https://www.regularize.pgfn.gov.br/, que entre tantas informações úteis disponibilizadas aos contribuintes, permite a extração de certidões, o amplo acesso a uma diversidade de informações fiscais, e ainda possibilita uma comunicação eficiente no sentido de promover o recebimento de denúncias, além de solicitações para parcelamentos e transações para o pagamento de débitos.

Na mesma esteira de combate e redução da litigiosidade, estabelece o art. 20 da Lei nº 14.195/2021, uma nova redação para o art. 19-C e a inclusão do art. 19-F, ambos na Lei nº 10.522/2002.

De acordo com a nova redação do art. 19-C, a PGFN continua autorizada a dispensar a prática de atos processuais e desistir de recursos interpostos, porém, agora há também autorização expressa para que autorize a celebração de acordos, observando critérios de racionalidade, economicidade e de eficiência.

Nota-se outra sutil alteração na redação do art. 19-C, trocando-se uma abordagem negativa por uma positiva: ao invés de se colocar que a dispensa da prática de atos e a desistência de recursos estariam condicionadas à verificação de um benefício patrimonial almejado que não atendesse aos critérios de racionalidade, economicidade e de eficiência, passou-se a contemplar como condição a finalidade de atendimento a critérios de racionalidade, de economicidade e de eficiência.

O art. 19-F, a seu turno, expressa autorização para que a PGFN contrate, por meio de processo licitatório ou credenciamento, serviços de terceiros para auxiliar sua atividade de cobrança, quando esta não envolva questões de sigilo fiscal.

Neste ponto nota-se uma clara distinção entre o que se teria como atividade fim ou atividade-meio, dando-se a clara impressão de que, em termos gerenciais, seria mais eficiente e menos oneroso terceirizar as atividades meio, assim entendidas como aquelas que não sejam atribuídas exclusivamente aos servidores efetivos do Poder Público [9].

 

Racionalização Processual

No capítulo X da Lei nº 14.195/2021 trabalha-se com o conceito de racionalização processual para se referir às alterações promovidas no Código de Processo Civil em torno, basicamente, do aperfeiçoamento do sistema de comunicação ao longo da tramitação do processo.

Entre os deveres das partes e de seus procuradores, insere-se no inciso VII do art. 77 do CPC a necessidade de se informarem e manterem atualizados os dados cadastrais, tanto perante os órgãos do Poder Judiciário, como também perante a Administração Tributária.

A inclusão em comento, deve-se ao fato da Lei nº 14.195/2021 ter incorporado a ideia de compartilhamento de dados com a Redesim, novidade contemplada a partir do art. 2º. O aproveitamento dos dados obtidos por esta plataforma tecnológica empresarial pelo Poder Judiciário, na medida do possível e resguardada a proteção e o sigilo de dados nos termos da legislação aplicável, traduz bem o emprego da palavra “racionalização”.

Acerca da citação, uma alteração significativa: a citação eletrônica, que até então figurava em um rol como uma das opções para sua realização, passou a figurar, em regra [10], como meio preferencial, ou seja, somente após a ausência de confirmação, no prazo de 3 dias úteis, contados do seu recebimento no meio digital, poderão ser acionadas as outras modalidades, quais sejam: pelo correio, por oficial de justiça, em cartório e por edital (art. 246, §§ 1º e 1º-A do CPC)

Frise-se ainda que a inovação legislativa em questão, para dar efetividade à citação na forma eletrônica, passou a estabelecer que o seu não recebimento deve ser alegado pelo réu na primeira oportunidade em que falar nos autos, acompanhado de comprovação de justa causa, sob pena de configuração de ato atentatório à dignidade da justiça, passível de multa de até 5% do valor da causa (art. 246, §§ 1º-B e 1º-C do CPC)

Visando a proteção dos jurisdicionados contra a ação de fraudadores por meio de práticas como phishing e outros malwares, justifica-se perfeitamente a inserção do art. 246, § 4º, que prevê expressamente que as citações realizadas por correio eletrônico (e-mails) serão acompanhadas código identificador para que se identifique a sua autenticidade na página eletrônica do órgão judicial citante.

Contudo, na parte em que o art. 246, § 4º dispõe que caberá à pessoa que receber por e-mail seguir instruções para realizar a confirmação do recebimento na página do órgão judicial, fica a dúvida se estas informações serão claras o suficiente para que a pessoa logre êxito nesta obrigação, e assim não incorra na sanção estabelecida pelo § 1º-C.

Um dos maiores questionamentos levantados acerca da realização de citações eletrônicas se extrai a partir da impossibilidade de se obter, por meio do sistema de correio eletrônico, uma confirmação idônea acerca do seu recebimento.

Após o ingresso da parte na relação processual, torna-se fácil manter qualquer tipo de comunicação pelo sistema judicial, pois o seu comparecimento torna possível o seu cadastramento com login e senha na plataforma, e qualquer acesso é passível de controle e monitoramento.

No entanto, quando se está diante de um correio eletrônico fora da organização, ou seja, mantido por terceiros, não se tem este controle, e muito menos a possibilidade de um rastreamento de dados e de movimentos com o consentimento do titular da conta.

E é neste ponto que reside o maior problema da citação eletrônica. Ela depende totalmente da boa-fé e da cooperação do citando. Estar na condição de réu, logicamente, não é algo naturalmente desejável. Se o réu não quiser receber a comunicação, pode se evadir.

E Isto pode comprometer a eficácia do correio eletrônico como principal mecanismo para a realização das citações, tornando a previsão do art. 246 quase letra morta. Só a prática poderá dizer se os outros meios deverão entrar em cena na maior parte dos casos, pois estes sim, possuem ainda algum elemento presencial e testemunhal acerca do recebimento efetivo da primeira comunicação nos autos.

Por esta razão, parece mais adequado buscar, em cooperação com órgãos públicos e até privados, alguma outra solução tecnológica que consiga registrar a confirmação do recebimento e de leitura no próprio correio eletrônico ou em outra plataforma que se demonstre mais adequada, pois dificilmente todos os destinatários lograrão êxito para confirmar o recebimento da citação eletrônica migrando para outro sistema.

Motivos não faltam para que esta proposta eventualmente não dê certo, pelo menos neste momento inicial: ausência de vontade do destinatário – ser réu é algo indesejado, logo, diante de qualquer dificuldade técnica, o réu pode se evadir facilmente e ganhar tempo alegando justa causa; e obstáculos de ordem cultural e técnica – não é nada simples sair de um sistema e ingressar em outro tendo que lidar com códigos complexos e links externos para realizar uma operação; tudo isto requer um conhecimento de informática que não é detido por parte expressiva da população, fora as possíveis falhas que possam ocorrer na migração de interfaces e sistemas, assimetria informacional e outras dificuldades operacionais.

Outra ideia que se apresentaria como uma interessante alternativa seria a formação de um cadastro único de pessoas em todo o território nacional, com uma plataforma específica para o recebimento de comunicações do Poder Público, semelhante ao que se fez por meio da plataforma “gov.br”.

Isto facilitaria muito a vida de todos, pois ainda há um grande problema de interoperabilidade, na medida em que atualmente existem muitos sistemas que devem ser constantemente acessados por um cidadão médio, e isto mitiga completamente a eficiência na comunicação. Ao invés de mensagens, o destinatário recebe “ruídos”.

Analogicamente, contempla-se o mesmo fenômeno observado em uma pessoa que possui várias contas de e-mails, WhatsApp, Telegram e inúmeras redes sociais. O titular de todas estas contas nunca conseguirá estar efetivamente presente em todas elas, e isto retira-lhes o poder de alcance das informações em circulação. Não raro, as pessoas livram-se de um aplicativo ou outro, para conseguirem visualizar certas mensagens; ou se utilizam de mais de um aparelho, setorizando as mensagens importantes daquelas que não serão visualizadas.

Em suma, o excesso de meios para a chegada da informação acaba gerando o efeito contrário, tornando-se uma fonte de desinformação. Portanto, o movimento do Poder Judiciário, assim como de qualquer órgão que integre o Poder Público, não deve ser neste sentido, de se criarem outras formas de comunicação descentralizadas, sem mecanismos efetivos de controle e monitoramento.

É por essa razão que a citação eletrônica só tem sido realizada com sucesso no caso das Pessoas Jurídicas que são obrigatoriamente cadastradas no Poder Judiciário, e são realizadas no próprio sistema processual eletrônico. Se todos os cidadãos fossem cadastrados obrigatoriamente em uma única plataforma governamental, vários problemas seriam resolvidos, pois ali qualquer órgão ou entidade pública poderia manter um canal direto de comunicação com o seu destinatário, revestido dos requisitos de segurança e autenticidade.

A ausência de um ponto focal torna o sistema de comunicação completamente ineficiente e caótico.

Por fim, observa-se a inserção de outras disposições voltadas para melhorias na comunicação processual, fazendo-se expressar: a necessidade de maior especificação do pedido para a exibição de documento ou coisa (art. 397, incisos I a III, do CPC); o aperfeiçoamento da redação do art. 921, inciso III, do CPC estendendo a suspensão da execução para a não localização de bens penhoráveis ao invés da constatação de que o executado não os possuiria; e, por fim, a harmonização da contagem e reconhecimento do prazo prescricional no curso do processo com as normas que tratam da localização do devedor e dos bens penhoráveis (art. 921, §§ 4º, 4º-A, 5º, 6º e 7º, do CPC).

 

Conclusão

Nota-se aqui um relevante impacto da pandemia sobre as relações comerciais eletrônicas, que ao longo de todo o período de isolamento social apresentaram um crescimento exponencial, tornando as plataformas de e-commerce a principal fonte de obtenção de mercadorias e insumos.

Evidencia-se aqui mais uma vez a intenção de se manter uma plataforma única e interoperável, medida importantíssima para que se mantenha a padronização de procedimentos, pressuposto indispensável para a eficiência e a eliminação de ruídos na experiência do usuário por assimetria informacional.

A acessibilidade do usuário aos serviços por uma plataforma única, preferencialmente integrada a outros sistemas logicamente necessários para etapas anteriores ou posteriores, promove muito mais do que a desburocratização e a eficiência, reduzindo a incidência de falhas humanas que decorram de uma compreensão inexata sobre a maneira correta de proceder perante a Administração Pública.

À primeira vista parece que a Lei nº 14.195/2021 é uma verdadeira “salada” que trata de diversas normas sem qualquer relação, de ordem tributária, empresarial e processual.

Todavia, como já se pode perceber ao longo da leitura do presente trabalho, existe um ponto de conexão entre todas estas modificações legislativas, que representa um verdadeiro movimento em direção à desburocratização e à transformação digital, fatores propulsores da economia de mercado e do desenvolvimento de uma nova sociedade, fruto da pandemia [11].

 

Notas e Referências

[1] Vide Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020 e alterações posteriores.

[2] À exemplo, citem-se as Resoluções CNJ de números: 385 (Núcleos de Justiça 4.0), 372 (Balcão Virtual), 358 (ODRs), 354 (Cumprimento digital de ato processual e de ordem judicial), 345 e 378 (Juízo 100% Digital) e 335 (Criação da PDPJ-Br). Disponível em: https://www.cnj.jus.br/atos_normativos/. Acesso em: 15 set. 2021.

[3] REDESIM. Todo esse processo informatizado, linear e único é composto pelos sistemas das instituições que dele participam com comunicação automática. Entre os parceiros, encontram-se os órgãos de registro (Juntas Comerciais, Cartórios de Registro Civil de Pessoas Jurídicas e OAB), as administrações tributárias no âmbito federal, estadual e municipal e os órgãos licenciadores, em especial o Corpo de Bombeiros, a Vigilância Sanitária e o Meio Ambiente. Disponível em: https://www.gov.br/empresas-e-negocios/pt-br/redesim/sobre-a-redesim. Acesso em: 15 set. 2021.

[4] RECEITA FEDERAL. Disponível em: https://servicos.receita.fazenda.gov.br/Servicos. Acesso em: 15 set. 2021.

[5] TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. Disponível em: https://www.tse.jus.br/eleitor/certidoes/certidao-de-quitacao-eleitoral. Acesso em: 15 de set. 2021.

[6] Vide Lei nº 14.063/2020 que dispõe a respeito do uso de assinaturas eletrônicas em interações com entes públicos, e sobre as licenças de softwares desenvolvidos por entes públicos.

[7] Ao longo dos últimos dois anos, contempla-se a formação crescente de redes e de portais unificados na Administração Pública. Como exemplo, dentre tantos, citem-se a plataforma “gov.br” (unificação dos serviços públicos prestados no âmbito federal), o Pix (pagamento instantâneo brasileiro que funciona a partir da integração de informações bancárias, gerido pelo Banco Central do Brasil) e o sistema de registro cadastral unificado disponível no Portal Nacional de Contratações Públicas (PNPC) referendado no art. 87 da Lei nº 14.133/2021.

[8] Atenção para o fato de que o Código Civil nesta data não se encontra devidamente atualizado, não havendo sido realizada a inclusão do art. 48-A na Lei nº 10.406/2002 no documento disponível para consulta no sítio oficial do Planalto. Vide: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em: 16 set. 2021.

[9] FERRAZ, Luciano. A terceirização na administração pública depois das decisões do STF. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-jan-31/interesse-publico-terceirizacao-administracao-publica-depois-decisoes-stf. Acesso em: 16 set. 2021.

[10] Via de regra, pois o § 3º do art. 246 do CPC estabelece a citação pessoal dos confinantes na ação de usucapião nos casos em que não se tiver por objeto unidade autônoma de prédio em condomínio.

[11] Nas palavras de Otavio Luiz Rodrigues Junior e Rodrigo Xavier Leonardo “A Lei 14.195/21 evidentemente encontra inspiração e o propósito de atender indicadores internacionais, em especial aqueles encontrados no relatório "Doing Business" do Banco Mundial”. RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz; LEONARDO, Rodrigo Xavier. O que mudou com a Lei do Ambiente de Negócios (Lei 14.195/21)? Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-ago-30/direito-civil-atual-mudou-lei-ambiente-negocios-lei-1419521. Acesso em: 16 set. 2021. 

 

Imagem Ilustrativa do Post: Metas nacionais do Poder Judiciário // Foto de: Divulgação/TJGO // Sem alterações

Disponível em: https://flic.kr/p/zQoQwX

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode 

 
 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura