“Arnaldo, pode isso?” ou quando o destino do réu é decidido de maneira heterodoxa

16/11/2015

Por Eduardo Januário Newton - 16/11/2015

Meninos, eu vi!”, é com o famoso bordão de Sassá Mutema que se inicia este texto. O recurso ao personagem de Lima Duarte é proposital, pois o que será relatado não é obra de ficção.

Eis a situação que serve de pano de fundo e que dela será possível examinar a observância do princípio democrático no processo penal. Um crime doloso contra a vida foi praticado e é então chegado o momento em que os sete jurados decidirão o destino dos réus que se encontravam presos. Com o intuito de delinear a realidade tratada, é relevante frisar que somente um dos acusados é apresentado com tolerável atraso – entenda-se: aproximadamente noventa minutos – ao ato solene designado e que os atores jurídicos se encontram com trajes carregados de simbolismo. Em razão de o outro preso ter sido trazido ao prédio do fórum com mais de quatro horas de atraso, decidiu-se pela análise judicial do único réu que se encontra presente. Diante dessa extemporânea apresentação do outro preso e da decisão de realização de proceder o julgamento somente daquele que já se encontrava presente, a defesa técnica apresenta pedido de relaxamento da prisão, que é indeferido, mesmo considerando o fato de a prisão preventiva já ter mais de um ano. Com o desmembramento do feito, o Defensor que sofreu a angústia da véspera se viu obrigado a lidar com o anticlímax. Inicia-se o julgamento, a instrução se realiza em plenário e, após o encerramento da fase de debates acalorados, é o momento de as partes se recolherem à sala secreta. A partir do contido na assentada do ocorrido na sigilosa sala, é possível se deparar com o inusitado. O acusado, após o quesito da participação ter sido respondido positivamente, é absolvido no quesito genérico. Prontamente, é invocado o artigo 490, Código de Processo Penal pelo Estado-acusação e nova votação é realizada para o quesito obrigatório. Para surpresa de todos, o réu é condenado. O que fazer? Novo escrutínio foi realizado e a condenação surge como vitoriosa na série de três votações.

Em um momento em que se critica o chamado modelo dos “pontos corridos” para o mais importante torneio futebolístico do país, depara-se com uma sentença que emergiu do sucesso da condenação no playoff realizado na sala secreta. E já que se falou em futebol, explode o questionamento: pode isso, Arnaldo?

Apesar de eventuais posicionamentos contrários, o princípio democrático deverá se fazer presente no processo penal, o que não exclui o procedimento especial para os crimes dolosos contra a vida. A resistência de alguns, que atende pelo nome de autoritarismo, é fruto da mais completa incapacidade de compreender a transformação jurídica prometida com o advento do Texto Constitucional de 1988.

No que se refere a notória impossibilidade de o processo penal ser apartado do modelo democrático, não se pode olvidar da precisa lição de Rubens Casara:

Não se pode, portanto, esquecer que o sistema de justiça criminal integra a estrutura do Estado e, portanto, é um espaço político, ‘locus’ em que se dá o controle social e outras funções típicas de governo da sociedade. A consciência da dimensão política do Processo Penal (e da possibilidade de manipulação da persecução penal e do sentimento de medo da população) é uma das principais condições à construção de práticas processuais democráticas e éticas.”[1]

E já que se falou em posturas que vão de encontro ao princípio democrático, ou seja, em autoritarismo, é de suma relevância destacar para o posicionamento de Márcia Tiburi:

A palavra autoritarismo é usada para designar um modelo antidemocrático de exercer o poder. A centralidade da autoridade é o atributo ou a característica de um governo, de uma pessoa ou até mesmo de uma cultura, que fornece o núcleo gerador da ação no exercício do poder autoritário. Diálogo e participação coletiva são impensáveis no espectro do autoritarismo que se define pela imposição à força de leis que interessam a quem exerce o poder. O outro, seja o povo (Estado), seja próximo (indivíduo), seja a sociedade outras formas de cultura, é manipulado, quando não violentado, tanto física quanto simbolicamente.”[2]

Contudo, é necessário ir além da denúncia, vale dizer, da dificuldade de lidar com o processo penal a partir das lentes democráticas. A forma como deve ser exercida a interpretação das normas processuais, não pode ser uma matéria relegada ao segundo plano, sob pena de a democracia formal ser minada por um incontrolável poder interpretativo dos atores jurídicos.

De nada adiantará as reformas legislativas, e as diversas modificações no CPP são provas concretas do que ora se afirma, enquanto o autoritarismo se fizer presente. E que fique registrado, o autoritarismo, tal como descrito por Marcia Tiburi, possui diversas formas de se manifestar. Esse cenário pode ser agravado quando o sujeito solipsista se fizer presente.

Lênio Streck, ao tecer críticas ao paradigma da filosofia da consciência – pois a filosofia no direito sempre se impõe - , assinala para a existência de limites interpretativos, ou seja, a interpretação a ser realizada pelos atores jurídicos não pode depender – sentença não vem de sentire – do bel prazer do hermeuta:

Se o método, para o paradigma da filosofia da consciência, é/foi ou supremo momento da subjetividade, decretar a sua superação, como magistralmente fez Gadamer, não quer dizer que, a partir de então, seja possível ‘dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa’ ou ‘qualquer coisa que a consciência nos impõe’. Ao contrário, se o método colocava a linguagem em um plano secundário (terceira coisa entre o sujeito e o objeto), manipulável pelo sujeito solipsista, a intersubjetividade que se instaura com o ‘linguistic turn’ exige que, no interior da própria linguagem, seja feito o necessário controle hermenêutico”[3].

Ainda sobre a relevância da filosofia no direito, é digno de nota que não se trata da adoção de um exercício de exibicionismo cultural, mas do reconhecimento de que somente assim é possível superar o senso comum teórico.

Por sua vez, no que se refere à crítica ao sujeito solipsista, não é demais frisar que subsiste a resposta adequada para o caso concreto e que, ao se tratar do exercício de parcela do poder estatal – a função jurisdicional – , o dever fundamental de fundamentar as decisões potencializa o princípio democrático e permite um melhor controle do Poder.

Ora, a partir das considerações feitas até o presente momento, resta examinar o disposto no artigo 490, Código de Processo Penal. Todavia, a análise do texto legal não pode ser realizada de maneira asséptica. A facticidade é imprescindível para e o seu desprezo é que permite a crítica à aplicação dos enunciados sumulados que indevidamente são tidos como precedentes.

Dessa forma, é examinada a seguinte situação: diante da maioria de votos obtidas no quesito autoria/participação, a absolvição no quesito genérico constitui contradição capaz de permitir a invocação do artigo 490, caput, Código de Processo Penal:

Art. 490. Se a resposta a qualquer dos quesitos estiver em contradição com outra ou outras já dadas, o presidente, explicando aos jurados em que consiste a contradição, submeterá novamente à votação os quesitos a que se referirem tais respostas”. 

A atual redação do artigo 490, Código de Processo Penal decorre da simplificação na forma de apresentação dos quesitos ao corpo de jurados, até mesmo como forma de evitar ou diminuir as nulidades tão comuns na sistemática anterior.

Independentemente do que veio a ser o resultado do convencimento do julgador da causa, caso a decisão seja pela absolvição, a razão em si é irrelevante, já que a decisão dos jurados é soberana. Aliás, é de bom tom frisar que a forma simplificada de se formular quesitos, não mais permite o manejo do recurso de apelação para impugnar absolvição no quesito genérico, quando lastreado no artigo 593, inciso III, alínea “d”, Código de Processo Penal.

Outrossim, o convencimento livre e imotivado – e que ganha maior espaço para efetivação frente ao quesito genérico – mesmo diante do reconhecimento da autoria/participação, não permite, ou não deveria permitir, a invocação do artigo 490, Código, Processo Penal. Dito de outra maneira: não há qualquer contradição capaz de justificar a realização de nova apreciação sobre o mesmo quesito.

A prosperar entendimento contrário, tal como veio a ser aplicado no caso narrado no início deste texto, toda e qualquer absolvição obtida no quesito genérico deveria ser ratificada pelo mesmo Conselho de Sentença na sala secreta. E essa situação não se sustenta.

Há, ainda, um outro aspecto que deve ser considerado: a realização de nova apreciação pelo Conselho de Sentença de quesito já votado pode afetar a imparcialidade do jurado, contaminado a sua decisão final. Na hipótese de condenação, não haveria espaço para invocar o dispositivo em comento. Porém, em razão da absolvição e do chamamento desse preceito, será que o leigo não se questionaria sobre o seu eventual equívoco anteriormente praticado? Haveria assim um julgamento imparcial e independente? Há fortes indícios que o processo justo seria afetado.

Em face do que veio a ser exposto, e, ainda, considerando o papel da doutrina que é o de realizar os constrangimentos epistemológicos nas decisões judiciais, afirma-se que a absolvição no quesito genérico, tal como ocorrido no caso narrado, não permite a aplicação do artigo 490, CPP. Não há contradição na decisão e, o pior, depara-se com o afastamento do modelo democrático de exercício do poder.

Se o modelo dos pontos corridos na disputa futebolística pode parecer tedioso, para as decisões judiciais não é por meio da melhor na série de 3 votações na sala secreta que a correta sentença surgirá. “A regra é clara”: se o acusado foi absolvido, deve o juiz apitar o final de jogo. A liberdade e a democracia agradecem.


Notas e Referências:

[1] CASARA, Rubens R. R. Processo penal do espetáculo. Ensaios sobre o poder penal, a dogmática e o autoritarismo na sociedade brasileira. Florianópolis: Empório do Direito, 2015. p. 16.

[2] TIBURI, Márcia. Como conversar com um fascista. Reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro. Rio de Janeiro: Record, 2015. p. 25.

[3] STRECK, Lênio Luiz. O que é isto- decido conforme minha consciência? 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. p. 109.


Eduardo Newton

Eduardo Januário Newton é Mestre em direitos fundamentais e novos direitos pela UNESA. Defensor Público do estado do Rio de Janeiro. Foi Defensor Público do estado de São Paulo (2007-2010).                                      

E-mail: [email protected]                                                                                                                                


Imagem Ilustrativa do Post: The lonely walk // Foto de: Vinoth Chandar // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/vinothchandar/4278047231

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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